A burocracia e o preconceito marcam a vida do transexual Ariadna bbb

Além da espera para operação, alteração oficial do nome também é difícil

FOTO: TV GLOBO/RENATO ROCHA MIRANDA
Revelação. Participante do "Big Brother", Ariadna revelou para todo o país, ao vivo, que é transexual
Longe de ser uma dúvida, a transexualidade é uma certeza para quem a vivencia. Que o diga Lea T, modelo belo-horizontina que foi a sensação ontem no São Paulo Fashion Week, ou Ariadna, que teve seus cinco minutos de fama ao participar da atual edição do "reality show" televisivo "Big Brother Brasil". A postura altiva de ambas diante dos flashes mostra que a transexualidade é, antes de tudo, um processo de autoafirmação e aceitação de si mesmo.


Entretanto, para a maioria dos transexuais, olhar no espelho acreditando ser de um sexo diferente da imagem refletida é apenas o início de uma verdadeira odisséia. Além do preconceito social e da burocracia para a troca do registro civil na Justiça, tanto de nome como de sexo, a grande luta dos transexuais é com a dificuldade para conseguir fazer a cirurgia de adequação sexual.



No Brasil, apenas quatro hospitais - nenhum em Minas Gerais -, são credenciados pelo Sistema Único de Saúde para realizarem o processo transexualizador. Apesar de o procedimento ser realizado pelo sistema público desde 2008, somente 84 mulheres transexuais - que nasceram com pênis e se submeteram à cirurgia para obter a "neovagina" - fizeram a cirurgia. O ministério da Saúde não informa quantas pessoas aguardam pelo procedimento no país, mas para o hospital carioca são 129 na fila. Em Belo Horizonte, pelo menos três transexuais esperam pela operação.



Expectativa. Assim vive Roberta Gonçalves Silva, 36, nascida em Jacinto, no Vale do Jequitinhonha, e registrada como homem. Há cinco anos, mesmo com o laudo médico confirmando que sua psique pertence ao sexo feminino, ela aguarda para fazer a cirurgia em um dos hospitais credenciados.



Moradora de Belo Horizonte há dez anos, ela conta que seu sentimento feminino existe desde a infância, mas foi aflorado na adolescência. "A certeza de ser mulher é tão grande que meu organismo desenvolveu seios e, fazendo uso de hormônios desde 1997, eles aumentaram", explica ela.



Por suas características femininas que não a "denunciam", Roberta afirma que não é alvo de preconceito da sociedade e tem a aceitação da mãe, dos três irmãos e duas irmãs. Atualmente solteira, ela namorou com "homens heterossexuais", como enfatiza, mas sofre com sua própria repulsa pelo órgão sexual. "Sinto nojo da minha parte da genitália e não me olho no espelho", desabafa ela, que também não divulga seu verdadeiro prenome de batismo. "Tenho vergonha dele", diz.



Por isso, Roberta não considera a cirurgia como um sonho, mas uma necessidade. "Vou ter meu corpo junto à minha alma, que sempre foi feminina", diz.
REGISTRO CIVIL
Juiz deveria se ater ao laudo médico
Um dos primeiros fundamentos listados na Constituição Federal é o da "dignidade da pessoa humana". É pensando nele que o juiz aposentado Roberto de Freitas Messano se baseia quando o assunto é a mudança de registro de um transexual.


Reconhecendo que cada caso deve ser analisado separadamente, ele opina que, mesmo não havendo legislação sobre o assunto, o magistrado deve se ater ao que foi constatado através de um obrigatório laudo médico constatando a transexualidade. "A Justiça não pode ser engessada. Prefiro acolher a súplica de um ser humano, desde que seja justificado, estudado", diz, sobre casos que deferiu.



Lembrando de colegas que concederam a decisão positiva para que transexuais mudassem seus registros mesmo antes da cirurgia de adequação de sexo, o juiz argumenta que é preciso haver critério, ouvindo o requerente e pessoas ligadas a ele.



"Precisamos nos adequar e nos curvar ao bom senso. Não é justo que se deixe de enfrentar a questão porque alguns acreditam ‘‘ser incabível transformar uma mulher em um homem ou vice versa’", considera o juiz. (AJ)
CIRURGIA
"Neovagina" sente orgasmos
Após ter realizado 48 cirurgias de mudança de sexo - sendo três de homens transexuais, quando há a retirada das mamas e útero -, o cirurgião plástico Leandro Garcia conta que a maioria das pacientes garante atingir o orgasmo.
A operação que resulta na "neovagina" dura quatro horas e aproveita quase toda a genitália masculina. A pele do pênis vira o "túnel", a uretra é adequada ao tamanho e os corpos cavernosos (que provocam a ereção) são reduzidos para fazer os grandes lábios.
Segundo Garcia, no quadro pós-operatório, a paciente normalmente fica internada por apenas uma semana, e a "nova mulher" deve colocar moldes na vagina, durante um mês, para não fechar. Além dos cuidados com limpeza, alimentação e repouso após a cirurgia, é imprescindível que a paciente tome os hormônios por toda a vida.


O procedimento, entretanto, não é barato. Segundo o médico, que é membro da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica, o processo de se fazer uma ‘neovagina" custa cerca de R$ 30 mil.
FOTO: RODRIGO CLEMENTE
Walkiria La Roche: "O judiciário ajuda a torturar a cidadã"
MINAS GERAIS
Transexuais têm auxílio em Centro de Referência
Como apoio aos transexuais, em Belo Horizonte, o Centro de Referência LGBTTT (lésbicas, gays, bissexuais transexuais, travestis e transgêneros) do Estado de Minas Gerais oferece assistência para quem deseja passar pela cirurgia ou mudar o registro civil.


A diretora do órgão, a transexual Walkiria La Roche, explica que o centro emite documentos para apresentar o caso do paciente à Secretaria Estadual de Saúde e, assim, possibilitar o encaminhamento aos hospitais credenciados do SUS.



A "voz ativa" de Walkiria tem justificativa em sua história. Expulsa de casa pelo pai, ela passou por grandes dificuldades nas ruas, mas conseguiu superar as adversidades devido ao talento com as artes cênicas.



Há cinco anos no órgão público, ela garante que as transexuais querem deixar de ser "invisíveis" e viver na "normalidade", mas as burocracias dificultam o processo de mudança de nome. (AJ)
Processo pode levar dois anos
O assessor jurídico do Centro de Referência LGBTTT, Rodolfo Compart, avalia que a demora do processo de mudança do registro civil vai de seis meses a dois anos.


Ele informa que a decisão de um juiz precisa ter embasamento em um laudo de uma junta médica. "Judicialmente, nada pode impedir o juiz de aceitar, a não ser que passe por um promotor preconceituoso", opina. Com o deferimento, o transexual é reconhecido como qualquer cidadão e pode, inclusive, se casar com o sexo oposto. (AJ)


FOTO: DIVULGAÇÃO
Completa. Poder sentir o prazer feminino é a maior realização da transexual Christiane do Couto Melo
REALIZAÇÃO PLENA
Depois dos 30, enfim, mulher
Andrea Juste
Especial para O TEMPO
Enquanto muitas transexuais "lutam" pelo sonho de verem o órgão masculino adequado cirurgicamente à genitália feminina, a professora do ensino fundamental e paisagista Christiane do Couto Melo vive essa realidade há 13 anos. Aos 43 anos de idade e registrada como mulher depois dos 30, ela conta que quis se "transformar" de uma forma "que não agredisse os olhos da sociedade".


Moradora da cidade de Senador Cortes, na Zona da Mata, os olhos verdes desenhados em traços delicados, o cabelo loiro e as brincadeiras de menina sempre a enquadraram no contexto feminino. Nascida em uma família que não lhe poupava carinho, Chris dos Brilhos – como foi apelidada em um concurso de beleza gay, há mais de 20 anos, por ser "radiante" – cresceu Chrispim do Couto Melo – nome que recebeu em homenagem ao pai.



As fases da vida de Chris foram acompanhadas sutilmente pelos cabelos que ia deixando crescer. Depois vieram as unhas, feitas em salão, e a depilação feminina, além do jeito educado e gentil de ser. Tudo isso foi dando a Chris o desejado ar de mulher.



Entretanto, a adequação física total só pôde acontecer devido ao convite de uma amiga para trabalhar como decoradora de vitrine na Suíça. Dos nove meses em que esteve no país europeu, 20 dias foram de internação para seu processo transexualizador. "Como era uma menina de um ‘interiorzão’ de Minas, achei que seria muito caro", diz ela, que conseguiu economizar para pagar, também, por uma correção no nariz e por próteses mamárias.



Em seguida, Chris retornou ao Brasil e, conta, foi recebida sem rejeição alguma pela cidade que tem menos de 2.000 habitantes.



Briga. O passo seguinte foi aquele que ela considera a verdadeira "briga": mudar seu registro de nascimento. "Foi a parte que mais doeu", diz, comparando com o que sentiu com a cirurgia – são mais de 400 pontos. Como o caso de Chris foi um dos primeiros, em Minas Gerais, de mudança de nome por ser transexual, seu processo precisou ser rigorosamente analisado. Após esperar dez anos, enfim, o moça "radiante" conseguiu manter o "Chris" de seu pai, mas ganhou o registro de mulher, como tanto sonhava. "Vendo a certidão, agradeci a Deus: sou verdadeiramente uma mulher", disse.



A grande prova para ela de realização é a "perfeição" anatômica do órgão operado e, por isso, consegue atingir o orgasmo.



Há aproximadamente 20 anos namorando com um policial militar, ela conta que o fato de estar apaixonada a ajudou a encontrar a alegria de se sentir mulher. "O prazer é maravilhoso. Sou uma mulher e adoro fazer amor", completa Chris.
PSICANALISTA
Programas das escolas precisam se adequar
Um destino da sexualidade. Assim é vista a transexualidade pelo psicólogo e psicanalista Paulo Roberto Ceccarelli, professor do departamento de psicologia da PUC Minas.


Segundo ele, no caso da mulher transexual, existe a grande dificuldade de aceitação do pênis que possui, e o homem transexual tenta a todo custo esconder os seios. Essa questão é a diferença-chave para os travestis, que não abdicam do "falo". "A transexual tem uma parte de seu corpo que não reconhece como sua. É como uma pessoa que nasce com seis dedos. A travesti sabe que é homem", diz.



Considerando que o lado social é o maior problema de qualquer pessoa, ele orienta que os pais e escola saibam lidar com os casos. A falta de aceitação pode desencadear a reclusão daquele que sofre preconceito. "O suicídio e o sujeito que se automutila são comuns", alerta Ceccarelli.



O professor alerta para a necessidade de temas como a transexualidade serem tratados nas escolas, cujo programa deveria passar por reformas. "Educação sexual não é colocar camisinha na banana", diz. Ele ainda lembra que a sociedade está mudando e que muitas crianças estão sendo adotadas por casais homossexuais, fato, que a escola não poderá ignorar mais. (AJ)
FOTO: GRIZAR JUNIOR/AE
A modelo transexual Lea T., ao deixar hotel em São Paulo
PERFIL
Lea T. pensou em não voltar ao Brasil
Notícias maliciosas, preconceituosas e histórias mal contadas sobre sua relação com o pai. Esses foram alguns dos motivos que fizeram a modelo e estilista transexual Lea T., 28, pensar em não voltar ao Brasil. Nascida em Belo Horizonte, mas residente na Itália, a filha do ex-jogador Toninho Cerezo desmentiu boatos e revelou em entrevistas que seu pai a apoiou na decisão de "mudar de sexo".


O retorno ao Brasil teve como motivo o desfile, ontem, na São Paulo Fashion Week, exibindo o trabalho do estilista Alexandre Herchcovitch. Porém, ela parece tranquila em voltar às raízes, pois chegou a dizer que deve saber separar as coisas e que há pessoas boas que então merecem seu respeito.



Na capa da revista britânica "Love", na qual aparece beijando a top Kate Moss, Lea T. é um rosto marcante em anúncios de marcas famosas, como Givenchy, mesmo ainda não tendo passado pela cirurgia de adequação sexual.



A uma revista ela disse ser realista sobre a possibilidade de não sentir o prazer feminino quando ganhar a "neovagina". Sentindo-se mulher desde cedo e tomando hormônios, ela disse acreditar que o procedimento será uma chance de tentar ser feliz ou viverá eternamente sem conhecer a felicidade.



Mesmo sendo registrada como Leandro, com traços consideravelmente femininos Lea T. mostra que a androgenia da moda pode ser um caminho. (AJ)